
Na pacata Três Corações da metade da década de 1970, o rock, a literatura e o cinema inspiraram três adolescentes a criar o folhetim cultural que levou um generoso poeta a ter com a ditadura militar. Quem conta essa história é um dos jovens editores de "João", o escritor e compositor Luiz Felipe Rezende.
Em 1975, Roberto Iemini de Carvalho, João Bosco Rezende e eu éramos jovens na faixa de 15 a 17 anos. Quando saíamos do colégio, antes do almoço, ficávamos no banco da praça conversando e vendo as meninas passarem. Achávamos que a nossa provinciana Três Corações estava numa mesmice tediosa e tivemos a ideia de criar um jornal com o objetivo de agitar um pouco. Foi também num banco da praça Odilon Rezende Andrade que, após uma longa discussão, chegamos ao consenso do nome do jornal: JOÃO. Não sei por que essa escolha.
Éramos amigos de Darcy Brasil, poeta e diretor da Biblioteca Municipal e levamos a ideia para ele. Darcy nos apoiou integralmente. Começamos a pensar num slogan: João, um jornal de Arte e Cultura. Darci ficou pronunciando “arte e cultura, artiicultura, articultura...”- Não, não soa bem, concluiu. Então colocamos: João, um jornal de Cultura e Arte. Ficava melhor, segundo o poeta. E o mais importante é que Darcy Brasil nos apoiou para conseguirmos os anunciantes. Ele escreveu uma crônica em outro jornal esculhambando os comerciantes locais: chamou um de turco pão-duro, insinuou que outro vivia na zona e falou que outros dois piraquaras vigaristas só sabiam pescar lambaris no Corgo Fundo. Disse que o prefeito, patrão dele, parecia duro como um aiatolá. Incluiu até o meu avô, o português Américo Campos, que se equilibrava no comércio e distribuição de bebidas. Falou que os comerciantes não faziam nada pela cultura na cidade: "são seres de outro planeta ou são seres inanimados?" Darcy era amigo de todos eles, então tinha a liberdade de falar desse jeito.
Logo surgiram os apoios e os patrocínios. Então nos animamos e começamos a divulgar. João Bosco bolou um panfleto com os dizeres “JOÃO VEM AÍ”. Sem dizer nada do que se tratava, levantava a curiosidade, e segundo ele, este seria o efeito da publicidade. Lembro, por exemplo, que saímos num sábado à noite panfletando nos bares da cidade. Também espalhamos, no boca-a-boca, que o jornal seria de oposição, contrário àquele estado de coisas, em plena ditadura.
Mas a repercussão dessas últimas ações não foi boa. Um jipe do exército com um tenente e um soldado foi buscar Darcy Brasil na biblioteca. No quartel, dentro da Escola de Sargentos das Armas, o capitão pegou o nosso impresso “JOÃO VEM AÍ” e perguntou para o Darcy: - o que é isto? O militar quis saber se tinha a ver com o ex-presidente João Goulart, na época exilado no Uruguai. Darcy negou a relação com o ex-presidente e explicou que o impresso foi criado apenas para anunciar um pasquim criado pelos garotos. O militar retrucou: - consideramos isso como um panfleto subversivo, pois não identifica do que se trata. Isso é proibido! Depois do episódio, os comerciantes começaram a ligar para o Darcy dizendo que retirariam o apoio se fôssemos criticar as autoridades.
Darcy nos chamou à biblioteca e falou: - se vocês forem por essa linha, eu tô fora. Ora, alguém vai querer dizer que ele deu pra trás. Não foi isso, pois quando o procuramos, falamos que o nosso pasquim abordaria apenas Arte e Cultura. Além do mais, era 1975, ano em que, por exemplo, Wladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, fora assassinado nas dependências do Exército. Darcy Brasil não gostava de ditaduras, expressou isso em sua obra. E a sua intenção era apenas ajudar os garotos a realizarem um pequeno sonho.
Tudo bem. Concordamos. Então vamos falar apenas de Cultura e Arte. No editorial de abertura do jornal, Darcy falou dos lírios no campo, tão bem conhecidos da Bíblia e do romance de Érico Veríssimo. E escreveu: “Que os garotos permaneçam no caminho certo, ou pelo menos, mais ou menos certo”. O jornal João publicou uma longa entrevista com o cineasta tricordiano Braz Chediak, que na época ganhou prêmio internacional e foi destaque no New York Times por seu filme Navalha na Carne, baseado em texto de Plínio Marcos. Na entrevista, Braz criticou alguns cineastas por estarem fazendo adaptações mal feitas e desrespeitosas da obra de Machado de Assis. Na época achamos que ele exagerou na crítica. Mas hoje estou certo que não, diante da importância literária de Machado de Assis. De tudo que já vi sobre o Bruxo do Cosme Velho no cinema, gosto apenas da adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas dirigida por Júlio Bressane, mineiro de Campanha.
Ainda naquela época, o departamento de cultura municipal promoveu eventos de vanguarda a que o nosso pasquim deu grande destaque, como as duas peças teatrais de Fernando Arrabal: “Fando e Liz” e “Cemitério de Automóveis”, encenadas na cidade. Escrevemos ainda sobre vários filmes de Ingmar Bergman e Pier Paolo Pasolini. E publicamos artigos de música falando de Pink Floyd, Lou Reed e Made in Brazil, entre outras bandas, além de publicarmos crônicas, contos e poemas escritos por autores tricordianos.
Sobre a pressão que sofremos para que não criticássemos o sistema, hoje penso que, nessa primeira e pequena experiência com jornalismo, eu já deveria ter aprendido a lição de que imprensa independente é um mito. Se as corporações injetam tanto dinheiro em anúncios e verbas publicitárias, como vamos querer que a mídia tenha autonomia? E o que acontece no microcosmo de uma pequena cidade do interior também acontece no resto do país. Levou um tempo, nada como o Tempo, para que eu compreendesse essa lição relativamente simples.
Por Luiz Felipe Rezende, compositor e escritor, convidado da 5ª Feira Literária das Águas Virtuosas, que será realizada entre os dias 07 e 16 de maio, com programação online. Mais informações em breve.
Darcy Brasil apresenta o João

Fonte: acervo pessoal de Luiz Felipe Rezende
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