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  • Foto do escritorLelo Brito

A FONTE DAS MULHERES


cinema, teatro, feminismo e vida


Por Keilla Petrin e Lelo de Brito, editores da Tabuleiro


“A vida imita muito mais a arte do que a arte imita a vida”, afirmou o poeta Oscar Wilde a respeito da curiosa relação entre o nosso cotidiano e os nossos grandes sonhos dirigidos. E é sobre a fenda, provavelmente falsa, entre a realidade e a ficção que se crava o belíssimo filme A fonte das mulheres (2011), do diretor e roteirista franco-romeno Radu Mihaileanu.

O enredo de La source des femmes - nome original - nos leva a uma pequena aldeia árabe no Norte da África, “ou onde quer que uma fonte corra e o amor seque”, como propõe a citação que introduz a história. A vila, assentada ao pé de uma montanha pedregosa, abandonada pelo governo e organizada em torno de rígidas tradições muçulmanas, parece esquecida no tempo. Ali, na distribuição dos afazeres do dia a dia, a maioria deles manuais, cabe às mulheres fazerem quase tudo, até mesmo subir a íngreme montanha para buscar água na fonte, dado que o vilarejo não conta com saneamento básico ou eletricidade suficiente. Enquanto isso, os homens, desobrigados da segurança da aldeia e da guerra que os ocuparam em outras épocas, desempregados ao mesmo tempo do feudalismo e do capitalismo, bebem chá e conversam, adiando a vida.

Logo nos primeiros minutos da trama, vemos a jovem Karima, interpretada por Farida Bouazzaoui, a carregar sobre os ombros, montanha abaixo, uma canga com dois baldes robustos cheios d’água. Sob a tensão do peso da carga e com a gravidez avançada, ela caminha e arfa. A trilha entre a fonte e a aldeia é tão íngreme quanto precária. Há galhos secos e pedras soltas no chão. Nelas, Karima de repente escorrega e cai. O tombo lhe provoca um aborto espontâneo.

Os abortos resultados de acidentes na montanha são tão antigos quanto a tradição que rege a vida na aldeia, mas são mascarados sob o pretexto de que as mulheres que perdem filhos são estéreis. O caso de Karima, porém, suscita um debate na casa de banho feminina do vilarejo: não seria justo os homens buscarem água ou se mobilizarem para fazê-la chegar aos lares? A resposta é até óbvia, mas como convencê-los?

É então que entra em cena Leila (Leila Bekhti), a estrangeira que veio do sul ao casar-se com Sami (Saleh Bakri), o professor da aldeia. Ela incita as outras esposas a fazerem uma “greve de amor”, pois “esse é o nosso único poder sobre os homens”, como diz a personagem.

O tema da greve de sexo feminina como meio de coerção aos homens remonta pelo menos ao ano 411 a.C., quando o dramaturgo grego Aristófanes escreveu a comédia Lisístrata. A peça conta que, para obrigar os homens a fazerem um acordo de paz que cessasse a Guerra do Peloponeso, as mulheres de várias cidades da Grécia, lideradas por Lisístrada, decidiram se negar aos maridos.

Em 2001, 25 séculos mais tarde, a sabedoria grega voltaria a decidir o futuro, agora o da sociedade. Em Siirt, capital de um distrito homônimo na região da Anatólia, na Turquia, a falta de água potável também levou as mulheres a fazerem uma greve de sexo contra a obrigação de buscar água nos poços para abastecer as casas. O curioso caso foi registrado pela imprensa internacional. Um mês após o início do protesto, os homens procuraram o governo local para pedir os materiais necessários à construção dos dutos. "Os homens vieram até nós e disseram, por favor ajudem, entendam nossa situação", contou Mehmet Carpraz, governador do distrito à época.


Peça teatral grega e rebelião feminista turca foram adaptadas por Radu Mihaileanu em A fonte das mulheres. No filme, a decisão pelo protesto não é pacífica. As mulheres sabem que ofender a tradição representa para elas graves riscos e que falta até mesmo uma instância social ou um foro íntimo para que o pleito seja apresentado. A impossibilidade de falar aos maridos é um dos motivos que, na narrativa, ligam o político ao poético. A dificuldade é contornada com rituais de ciranda: as mulheres dançam e cantam suas demandas em cenas que expõem ao mesmo tempo a beleza exuberante da cultura moçárabe e o lugar subalterno reservado nela às mulheres.

O drama das pressões e agressões que as mulheres sofrem para desistir de alterar o equilíbrio da tradição é habilmente temperado pela ironia com que se aponta e desmascara os privilégios masculinos. No concurso dos conflitos entre os personagens, o filme trata com sutileza de temas espinhosos, como a violência contra a mulher, a maternidade impositiva, o silenciamento feminino e a manipulação do discurso religioso em favor de privilégios machistas. Na poética do diretor franco-romeno, nada distrai ou agride o olhar do espectador, a exemplo de outros filmes do mesmo diretor, como o Trem da Vida (1998) e O concerto (2009).

Na clave da delicadeza, As mil e uma noites, clássico maior da literatura árabe, surge a certa altura em A fonte das mulheres para nos lembrar que, há tempos, com as mais belas narrativas, o prazer, a sensualidade e o desejo mútuo entre homens e mulheres é cultuado como alternativa à sujeição feminina. Um erotismo habilmente mostrado nos momentos finais do filme quando, paralelo à água que jorra da fonte, temos uma cena de amor e gozo entre Leila e Sami. Ricas são as fontes dos nossos primeiros amores.


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