Conheça a carreira de Anselmo Duarte como ator e cineasta
A Mostra Anselmo Online do Vagão 98, entre 11 e 17 de dezembro, está homenageando um dos principais cineastas brasileiros de todos os tempos. Único vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1962, com "O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte foi um artista talentoso e obsessivo, injustiçado pela crítica e aclamado pelo público.
Por Lelo de Brito
O GALÃ
Nos idos de 1940, Rui Severiano Ribeiro era o maior exibidor de cinema do Rio de Janeiro, a capital do país. Ambicioso, ele se recusava a exibir filmes nacionais. Preferia os hollywoodianos, abundantes e bem mais lucrativos, para os quais o público brasileiro estava sendo solidamente educado. No Palácio do Catete, não muito distante de uma das salas de Severiano Ribeiro, o presidente Getúlio Vargas, pressionado pelos produtores tupiniquins, baixou uma lei de cotas que obrigava todas as salas de cinema do país a dedicarem parte da programação aos filmes brasileiros.
Por pura birra, Severiano Ribeiro decidiu então entrar no ramo da produção de filmes nacionais: e, com pachorra, convidou dois cineastas italianos, radicados no país após a Segunda Guerra Mundial, para dirigirem as histórias. Graças a essa iniciativa, mais tarde Severiano Ribeiro seria considerado um traidor pelo movimento do Cinema Novo. Os italianos convidados por ele eram Alberto Pieralisi e Ugo Lombardi - pai de Bruna.
Como se fora uma história do cinema, em certa manhã de sol o jovem economista Anselmo Duarte, redator da revista Observador Econômico, fumava distraído a caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro quando foi abordado com uma pergunta fugaz: gostaria de fazer um teste para ator de cinema? Elegante e esguio, com 1,88m de altura, o queixo quadrado imponente e os cabelos pretos bem cortados, assim como o terno que vestia, ele se portava à moda de seus ídolos, os galãs das telonas da época. O mundo da sétima arte não lhe era completamente estranho. Duarte já tinha feito pontas em algumas produções, entre elas o lendário "It 's All True”, de Orson Welles, rodado no Brasil e jamais concluído. O jovem economista, que sabia se sair a Tyrone Power - grande astro do teatro e do cinema norte-americano, falecido em 1951 - topou o convite.
Em um estúdio alugado, Anselmo Duarte se viu entre alguns dos grandes atores da Atlântida, o maior estúdio do país à época. Tímido e maravilhado, pediu autógrafos. A Pieralisi, que dirigiu os testes, pouco importou que Duarte tenha esquecido os diálogos e confessado, sem rodeios, que não era um ator. O diretor viu nele a centelha de outro grande do cinema, um galã italiano também meio caipira de nome Marcello Mastroianni.
O primeiro filme estrelado por Anselmo Duarte foi “Querida Suzana” (1946), que marcou também o início da carreira Nicette Brunno, então com 12 anos. Rapidamente, o jovem talento galgou seu protagonismo na Atlântida. Ali trabalhou em uma série de filmes, uns importantes, outros meramente comerciais, como “Terra Violenta”, “Pinguinho de Gente”, “Caçula do Barulho”, “Carnaval no Fogo”, “Aviso aos Navegantes” e “Maior que o Ódio”. Inquieto e antenado em todo o processo de construção de um filme, o jovem Duarte ajudou os estúdios a adaptar os musicais norte-americanos ao clima carnavalesco e brasileiro. Assim produziu um duplo efeito, ao mesmo tempo em que pavimentou o caminho para sua futura passagem para a direção, facilitou a taxação de sua imagem pública como a de um galã e um homem de cinema das chanchadas.
Em 1951, os estúdios Vera Cruz tentavam fixar em São Paulo o eixo da capenga indústria cinematográfica brasileira e fizeram a Anselmo Duarte uma proposta irrecusável. Ele estava no ápice da fama, era assediado nas ruas e havia conquistado um programa próprio na rádio Record, dedicado a conversas com os fãs. Entre as exigências que fez para deixar o Rio de Janeiro, o ator de 32 anos pediu a chance de dirigir seu primeiro filme. Era algo que ele desejava intensamente. “Desde o começo eu quis dirigir. A coisa de ser um ator galã limita muito, eu queria contar as minhas próprias histórias”, comentou Duarte, nos anos de 1990, em entrevista a um programa de tevê.
Na Vera Cruz, Anselmo Duarte fez cinco filmes. Com o primeiro deles, “Tico-Tico no Fubá” (1952), em que interpretou o compositor Zequinha de Abreu, venceu o prêmio Saci, do jornal O Estado de S. Paulo, de melhor filme. Naquele ano Duarte recebeu também o prêmio de melhor ator, mas pelo drama “Maior que o Ódio” (1951), de José Carlos Burle, feito ainda na Atlântida.
Dois anos mais tarde, porém, a Vera Cruz entrou em colapso e Anselmo Duarte se viu obrigado a voltar para o Rio de Janeiro sem ter estreado na direção. Ali passou a frequentar o badalado Restaurante Fiorentina, onde virava noites boêmias a discutir cinema, arte e política em companhia de Mário Lago, Jorge Ileli, Watson Macedo, Carlos Imperial, Ruy Guerra, Tom Jobim, Cacá Diegues, Roberto Farias e outros.
Sempre como ator e de olho em todo o processo de feitura de um filme, nessa época Duarte estrelou filmes como “O Diamante” (1955), de Eurides Ramos, “em que aprendi tudo o que não se deve fazer em cinema”, e “Depois Eu Conto” (1956), de José Carlos Burle, sobre a vida do excêntrico colunista social Ibrahim Sued. Em 1957, a convite do diretor argentino Tom Payne, ele voltou a São Paulo para atuar em “Arara Vermelha”, uma história de José Mauro de Vasconcellos sobre a cobiça: seduzidos pela ideia de possuir um hipnótico diamante, todos os personagens do filme morrem. Durante a produção, Duarte usou uns restos de negativo e uma câmera portátil Arriflex para registrar as gravações como documentário, o que terá sido o primeiro making-of do cinema brasileiro. Intitulado “Fazendo Cinema”, o filme ganhou o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de melhor documentário do ano. Anselmo Duarte já era bem mais que um grande ator e galã do cinema brasileiro.
Destaques como ator: Carnaval de Fogo (1949); Aviso aos navegantes (1950); Tico-tico no fubá (1952); Carnaval em marte (1955); Absolutamente certo (1959); O caso dos irmãos naves (1967).
O GÊNIO
“Se precisava de um empurrão para me lançar em definitivo ao projeto de virar diretor, ele veio com “Fazendo Cinema”. A partir daí, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o meu filme”, declarou Anselmo Duarte ao seu biógrafo, Luiz Carlos Merten.
O argumento da primeira direção nasceu de conversas com seu amigo e ator Jorge Doria, que lhe contou sobre um velhinho que ficou rico ao acertar todas as perguntas sobre geografia feitas em um quiz-show de tevê. Duarte fez o protagonista mais jovem, para poder interpretá-lo, e escreveu um roteiro com que buscou criticar a televisão pré-tape e, através dela, o país que se modernizava. Assim nasceu a comédia com ares de chanchada “Absolutamente certo” (1958). “Creio que foi o primeiro filme brasileiro a incluir o rock na sua trilha. E isso foi uma coisa deliberada, para desafiar o então governador Jânio Quadros, que baixou um decreto proibindo que se tocasse rock, a música dos jovens, nos bailes”, contou Duarte ao seu biógrafo.
Marca registrada de Anselmo Duarte, mesmo um projeto comercial e de certo modo ingênuo como “Absolutamente certo” foi feito com mais rigoroso apuro técnico. O projeto contou com alguns dos melhores técnicos egressos da Vera Cruz, sob a direção de um cineasta que sabia roteirizar, iluminar, fotografar, dirigir atores e montar. Sob a batuta de Anselmo Duarte a mescla de elementos aparentemente díspares no filme, como a tevê, lutas, números musicais, romances e piadas, fez grande sucesso com o público. “Absolutamente certo” ocupou 40 salas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os produtores, satisfeitos, encomendaram a repetição da fórmula. Mas Duarte preferiu aplicar a expressiva renda do filme em uma viagem para ver de perto o nascimento da Nouvelle Vague na Europa.
Anselmo Duarte desembarcou em Portugal em 1959, onde conheceu o estúdio Tobes. Ali, sob a direção de Perdigão Queiroga, protagonizou uma adaptação de “As pupilas do senhor reitor”, clássico da literatura portuguesa de Júlio Diniz. Meses depois, em Paris, se matriculou no Institut des Hauts Études Cinématographiques. Ao mesmo tempo, Duarte tentava parcerias para filmar seu roteiro noir “O Rapto”, filme que nunca foi concluído. Em 1960, o cineasta viajou a Cannes. Lá, tornou-se amante de Christiane Rochefort, que secretariava o já afamado festival. Anos mais tarde recairia sobre Anselmo Duarte a acusação de ter vencido a Palma de Ouro de 1962 por influência de Rochefort. “Como se fosse possível ocorrer uma coisa dessas, ainda mais num festival do porte do de Cannes. Christiane era feminista e existencialista”, defendeu-se o cineasta.
Durante o festival de Cannes de 1960, Anselmo Duarte tornou-se amigo do jornalista português Novaes Teixeira, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Entre um papo e outro, eles souberam que naquele ano os norte-americanos filmariam um épico sobre a vida de Jesus Cristo chamado “O Rei dos Reis”. Duarte e Teixeira se divertiram com a ideia de que certamente seria um filme muito colorido, com personagens envoltos em mantos de cetim vermelhos, verdes e azuis que imitavam a luxuosidade. Foi então que Anselmo Duarte decidiu contar a vida de Cristo de outra maneira, sincera e autêntica, simples e humana.
De volta ao Brasil, Anselmo Duarte trouxe o conhecimento de que necessitava para realizar sua grande obra: os equipamentos e técnicas que permitiam filmar em locações - fora dos estúdios. E trabalhou seis meses em seu roteiro sobre a saga de Cristo no terceiro mundo. Mas a história não soava a contento. Numa das tardes empacado à máquina de escrever, Duarte recebeu um convite do dramaturgo Flávio Rangel: ir ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) assistir à peça “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes. A experiência foi arrebatadora. Com o Leonardo Villar no papel principal, a peça reunia em uma narrativa poderosa todos os aspectos culturais e sociais que Duarte pretendia para o seu filme.
Após dura negociação com Dias Gomes, os direitos de adaptação da peça para o cinema foram vendidos. Para Anselmo Duarte se tratava de um desafio completamente novo: dirigir um filme com profundidade psicológica e complexidade cultural, que ele pretendia que agradasse não apenas ao público brasileiro, mas ao mundo inteiro: uma tarefa monumental para a segunda experiência de um jovem diretor paulista e intuitivo.
“O Pagador de Promessas” conta a história de Zé Burro, um devoto de Iansã - Santa Bárbara, no sincretismo brasileiro. Para cumprir promessa feita em um terreiro de candomblé, para que seu burro se curasse de uma chaga, ele peregrina do sertão baiano até Salvador carregando uma cruz, com a qual pretende entrar na Igreja de Santa Bárbara. Na trama, o Brasil rural e folclórico se mescla a um país urbano, que começa a se modernizar entre graves contradições. O filme emprega dramaturgias clássicas para tratar de temas regionais e nacionais, mas também profundamente humanos. Na encenação a céu aberto, a arquitetura da escadaria e da igreja soteropolitana à Santa Bárbara se convertem em um cenário de realismo mágico, teatral e lúdico, mas realista.
“O Pagador de Promessas” de Anselmo Duarte, pelas qualidades de sua realização técnica e artística, foi um ponto fora da curva do cinema brasileiro de seu tempo. Apesar das acusações de academicismo pelos cinemanovistas, o filme foi recebido com elogios como “o melhor filme nacional de todos os tempos” e “vibrante, transbordante de humanismo e veracidade”, por críticos como o gaúcho Tuio Becker. No começo de 1962, o Itamaraty formou uma comissão de notáveis para selecionar qual filme representaria o país no festival de Cannes. “O Pagador de Promessas” avançou até a seleção final e bateu “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra, um dos primeiros filmes do Cinema Novo.
Em Cannes, Anselmo Duarte conquistou a Palma de Ouro de 1962, disputando com alguns dos maiores diretores da história do cinema, como Michelangelo Antonioni, Robert Bresson e Luis Buñuel. “Quando voltei ao Brasil, depois de Cannes, ao chegar no porto de Santos, desfilei com os atores num carro de bombeiros, mostrando a Palma de Ouro. O povo, nas ruas, aplaudia e gritava: ‘o caneco é nosso!’”, recordava-se o cineasta. Além do mais importante prêmio do cinema, “O Pagador de Promessas” foi um dos filmes mais premiados daquele ano no mundo inteiro, tendo sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Tornou-se mítico, polêmico, sujeito a todo tipo de escrutínio, às paixões e à inveja.
Passados 60 anos, é consensual que a Palma de Ouro em Cannes foi para Anselmo Duarte um prêmio menos hagiográfico que maldito. O filme e seu diretor, na época, foram alvo de virulentos ataques e críticas figadais no Brasil. O relevante crítico de cinema Alex Viany anotou que “O Pagador de Promessas” era o “último grande êxito do velho cinema”. Glauber Rocha, que se infiltrou no processo de filmagem apresentando-se como repórter, criticou duramente o filme - décadas mais tarde ele retificaria suas críticas em livro. “De vencedor da Palma de Ouro, virei um semianalfabeto. Até hoje fazem de tudo para me tirar da história. Não adianta, o único filme brasileiro a vencer o prêmio principal do mais importante festival do mundo é o meu. Outro poderá ganhá-lo no futuro. Espero que ganhe. Quando isso ocorrer, espero que seja tratado com mais respeito do que eu”, declarou Duarte a seu biógrafo. Fellini viu “O Pagador de Promessas” em Cannes e procurou Anselmo Duarte após a exibição para cumprimentá-lo pelo filme.
Em 1965, Duarte dirigiu um filme discreto e excepcionalmente bem realizado, “Vereda da Salvação”. Estrelado por Raul Cortez, trata-se de uma história rural, sobre o messianismo e as relações feudais até hoje vigentes no Brasil profundo. Anselmo Duarte dirigiu filmes até 1979, quando lançou “Os Trombadinhas”. E atuou em filmes até 2009, ano em que faleceu. O cara da Palma de Ouro começou como galã e se tornou um gênio incontornável do cinema brasileiro.
Destaques como diretor: Absolutamente Certo (1957); O Pagador de Promessas (1962); Vereda da Salvação (1965); Quelé do Pajeú (1969); Um capitão Rodrigo (1971); e Os Trombadinhas (1979).
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